DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS SOCIAIS
Abstract
O constitucionalismo contemporâneo tem exercido um papel importante na proteção e promoção dos direitos fundamentais, em especial, dos direitos sociais uma vez que o reconhecimento da força normativa da Constituição[1] e a posição de centralidade ocupada pelo homem na ordem jurídica condiciona a interpretação das normas jurídicas e vinculam a atuação dos poderes públicos na concretização dos bens e interesses veiculados[2].
Os direitos sociais enquanto veiculado por normas constitucionais gozam de exeqüibilidade plena, permitindo sejam os bens e interesses que tutelam exigíveis perante o Estado[3]. Em razão disto, observa-se uma tendência progressiva de reconhecimento de sua dimensão subjetiva de forma a garantir a sua concretização no mundo dos fatos.
Cabem, portanto, aos poderes públicos na concretização dos preceitos fundamentais, observadas as possibilidades das regras e princípios constitucionais e limitados aos seus respectivos campos de conformação ou discricionariedade, decidirem sobre as questões políticas definindo quais são capazes de atender as necessidades do grupo social[4].
O Poder Judiciário na sua função contramajoritária exerce o controle dos atos políticos restrito à proteção dos princípios e regras constitucionais em face do interesse da maioria, reconduzindo sempre que possível sua argumentação à razão prática de forma a garantir a legitimidade e a racionalidade de suas decisões, porém, é inevitável a tensão entre democracia e constitucionalismo.
No sistema representativo o campo adequado para o debate sobre a conveniência da decisão política é o controle social através de mecanismos que variam desde a mobilização da sociedade civil na fiscalização da gestão pública até a responsabilização política através de eleições competitivas[5].
Todavia, por discricionariedade administrativa não se pode mais compreender o espaço amplo de liberdade decisória concedida à Administração Pública na eleição entre os indiferentes jurídicos, inserto na esfera de atribuição concedida pela norma jurídica e de acordo com a formulação dos juízos de conveniência e oportunidade promovidos[6].
Existem fins esperados e exigíveis da atuação estatal, exteriorizado na realização dos bens e interesses fundamentais da sociedade veiculados pela Constituição, inclusive, com a definição de prioridades e dispêndio dos recursos estatais, que vinculam os poderes públicos construindo no espaço de sua atuação limites objetivos invioláveis[7].
Transmuta-se, portanto, a concepção da discricionariedade administrativa de uma ampla esfera de escolha na persecução do interesse público não sujeito a controle pelos poderes públicos a um campo de ponderações proporcionais e razoáveis entre os bens e interesses constitucionais, sujeita a controle exercido pelo Poder Judiciário[8].
Isto importa no estreitamento do mérito administrativo pelos procedimentos técnicos e jurídicos definidos pela Constituição ou lei que permitam o exercício da opção política capaz de garantir a otimização do grau de legitimidade da decisão administrativa com a integração nos limites de sua competência ao atendimento do interesse público[9].
Sob este prisma, busca o presente trabalho demonstrar a possibilidade de controle do mérito administrativo pelo Poder Judiciário, no que tange as políticas públicas que buscam implementar os direitos sociais, de forma a tutelar através de um juízo de legalidade e de proporcionalidade, os respectivos direitos fundamentais de segunda geração.
De início, aborda-se a questão da exigibilidade dos direitos sociais, de modo a delimitar o núcleo a ser garantido pela tutela judicial, na busca pela efetividade do preceito constitucional que seja passível de minimizar a eventual problemática da legitimidade e contribuir na preservação dos valores democráticos.
Após, são vistas as políticas públicas de modo a delimitar a ação governamental na esfera administrativa como forma de concretização dos bens e serviços necessários a sua fruição dos direitos sociais, verificando as limitações e a sua respectiva sujeição ao controle em esferas adequadas.
Por fim, a análise concentra-se nos limites à discricionariedade administrativa no âmbito das políticas públicas de implementação dos direitos fundamentais, de forma a delimitar standards que permitam garantir a concretização dos direitos sociais sem que signifique em desconsiderar o espaço de decisão administrativa.
[1] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p 14-15.
[2] Sobre as transformações do direito constitucional contemporâneo, consulte-se por todos: BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O Triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil in: Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (Orgs). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 203-250.
[3] As normas constitucionais tenham caráter imediato ou prospectivo como regras de conduta emanadas do Estado são dotadas de eficácia jurídica. Assim, incidem e regem as situações de vida produzindo os seus efeitos próprios, e, diante da sua inobservância espontânea deflagram mecanismos de aplicação coativa. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6 ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2006. p 248 e 274.
[4] Isto não importa, todavia, na intangibilidade do conteúdo do ato do Poder Público. O princípio da razoabilidade tem sido utilizado para aferir à adequação entre os motivos, os meios e os fins empregados, permitindo a invalidação dos atos inadequados, desnecessários ou excessivos em relação aos valores vigentes da sociedade. Sobre o tema: OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
[5] Sobre as técnicas de participação formais e informais da sociedade na atividade estatal e a sua atuação como instrumentos de legitimação do poder do Estado consulte-se por todos: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da Participação Política. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. Vide também: JUSTINO DE OLIVEIRA, Gustavo Henrique. Participação Administrativa in: OSÓRIO, Fábio Medina e SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Estudos em Homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2006 p. 401-428.
[6] Nesta ordem, compreende o mérito administrativo os juízos formulados pela Administração Pública acerca da conveniência, oportunidade, equidade e demais critérios utilizados na decisão administrativa que são definitivos e inquestionáveis perante o poder Judiciário. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Da Discricionariedade Administrativa. São Paulo: Atlas, 1990. p. 92.
[7] Há casos em que a Constituição consagra de forma explícita os fins esperados, como ocorre com a obrigatoriedade da prestação universal da educação fundamental e medicina de urgência, de modo que condicionar sua promoção à discricionariedade administrativa e conformação legislativa seria violação dos direitos individuais e políticos, cujo exercício pressupõe a garantia mínima do bem-estar, que envolve a realização de condições econômicas e sociais básicas. BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das Políticas Públicas em Matéria de Direitos Fundamentais: O Controle Político-Social e o Controle Jurídico no Espaço Democrático in Revista de Direito do Estado. Ano 1. n. 3. 2006. p. 37. e MOURA, Emerson Affonso da Costa. Do Controle Jurídico ao Controle Social das Políticas Públicas: Parâmetros a Efetividade dos Direitos Sociais. Mimeografado. 2010. p. 10
[8] Neste tocante, cabe ao Poder Judiciário a correção da discricionariedade, apurando a sua conformidade com o Direito, a racionalidade do discurso que a legitima, o atendimento ao código dos valores dominantes e a proporcionalidade na correlação lógica entre motivos, meios e fins, de forma a preservar a escolha do meio menos gravoso e proporcional aos fins a serem alcançados. CUNHA, Rubem Dário Peregrino. A juridicização da discricionariedade administrativa. Salvador: Vercia, 2005. p. 168-172.
[9] Sendo a discricionariedade competência cometida à Administração para integrar a vontade da lei ou Constituição, corresponde a um resíduo de legitimidade da opção política, que terá a alcançada sua legitimidade por sua fundamentação e eficiência, traduzida na melhor realização dos bens e interesses socialmente almejados. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 7-8 e 32-33.